Uma reflexão sobre o design humanitário e o imperialismo

Postado em: 30 / 08 / 2010

Márcio Dupont, colunista do BDxpert.com

Márcio Dupont, colunista do BDxpert.com

Márcio Dupont

Gostaria que este meu artigo servisse como base para uma reflexão por parte dos designers brasileiros, estimulando a discussão, em nível mundial, sobre o design humanitário. Vivemos um excelente momento para isso, ainda mais, se levarmos em conta o processo progressivo de reconhecimento do design nacional dentro e fora do país e, ao mesmo tempo, a vinda de designers e ONGS estrangeiras fascinados pelo nosso país e ávidos em trabalhar aqui.

Em julho de 2010, o famoso especialista americano em design e inovação, Bruce Nussbaum escreveu um artigo que causou polêmica no mundo do design dos países ricos. O artigo, intitulado “Is humanitarian design the new imperialism?”, questionava a essência/ação do chamado design humanitário praticado pelos designers americanos/europeus que iam aos países pobres para “projetar e resolver” problemas locais de saúde, educação, moradia.

Bruce Nussbaum, que foi criticado por questionar o design humanitário

Bruce Nussbaum, que foi criticado por questionar o design humanitário

Tal questionamento surgiu porque em duas ocasiões importantes em cenários internacionais de design, essa ajuda humanitária dos designers e fundações americanas não foi bem recebida, sendo de alguma maneira contestada.

Esse acontecimento “inesperado” surpreendeu Nusbaum e o levou a refletir sobre o porquê desse sentimento contra, e se essa atitude de ajuda poderia ser classificada como imperialista, trazendo mais danos que benefícios. Mais, por que o designer não resolvia os seus problemas no seu país, na sua cultura e contexto?

Para ele, essa reação aconteceu porque os países pobres, ainda com resquícios graves (históricos, sociais e econômicos) de sua própria história colonial, viam essa disposição de ajuda como uma imposição imperialista pós-colonial, gerando assim um misto de gratidão e ira. Ele não questionava a intenção, geralmente sempre boa, mas sim a questão de ter o elemento-designer estrangeiro, que não seria capaz de entender todos os matizes e contextos locais, culturais, sociais de países tão complexos como a Índia.

William Kamkwamba, com seu moinho de sucata que beneficiou sua comunidade

William Kamkwamba, com seu moinho de sucata que beneficiou sua comunidade

Como exemplo, Nussbaum citava o famoso projeto, talvez um dos primeiros, One laptop per Child, apoiado por gigantes como MIT, Continuum, que fracassou no seu objetivo de democratizar a Internet e a educação, já que foi vetado pela Índia (mas adotado pelo Paraguai). O veto aconteceu porque o projeto foi classificado por eles como colonialismo tecnológico, que deixava de fora os elementos mais importantes da educação local, como professores, famílias, educadores.

Aparentemente o artigo não tinha intenção de gerar polêmica, mas levantar um questionamento, uma reflexão de alguém com experiência e prática desde os anos 60 no tema, que via como essa ajuda humanitária trazia mais erros que acertos, mas finalmente, para surpresa dele, gerou polêmica e foi rapidamente contestada, até de forma agressiva em alguns casos.

A resposta veio rápida, com diferentes opiniões, alguns designers foram contra a visão de Nussbaum, chamando-o de conservador, imperialista. Outros afirmaram que o importante é fazer algo, bem ou mal, mas fazer. Outros ainda reconheceram que o design humanitário no exterior era uma área perigosa e preferiam então trabalhar localmente.

Houve também quem afirmasse fazer design global desde uma empresa global e com uma perspectiva mais corporativa direcionada a um design menos suscetível de ser julgado certo ou errado.

Moinho criado por William Kamkwamba é um design humanitário que deu certo

Moinho criado por William Kamkwamba é um design humanitário que deu certo

Esse questionamento do design humanitário talvez seja apenas uma constatação de que, em um primeiro momento, houve uma corrida desenfreada, não pensada totalmente, de designers de países ricos aos pobres, com soluções locais e mentes globais – sem os resultados esperados para ambos os lados.

Agora estaríamos avançando em direção a uma segunda etapa, mais madura, com soluções locais e mentes locais, respeitando assim a diversidade cultural, social e ecológica local. Alguns designers reconheceram a ingenuidade inicial e a dificuldade de projetar para problemáticas estrangeiras, eles mesmos voltando posteriormente aos Estados Unidos para resolver problemas locais. Fortalecendo assim a idéia de pense globalmente, atue localmente.

Por essa razão, alguns núcleos de design humanitário estão colocando células locais de designers para que eles resolvam problemas locais. Surge então uma perspectiva interessante  mais positiva no longo prazo, além de coerente, na qual o design humanitário não é apenas o design em si, a solução material, mas a criação de capital intelectual e criativo capaz de resolver os problemas locais com uma perspectiva local. 

Há inúmeros exemplos na África, onde os problemas locais já estão sendo resolvidos com soluções nativas. O caso mais famoso é o de William Kamkwamba, que criou um moinho de vento a partir da sucata. Essa ação deu um resultado inesperado. Trazendo-lhe prestigio e reconhecimento internacional, possibilitando assim solucionar outros problemas de sua comunidade. Curiosamente a maioria das respostas ficou no âmbito do design e não houve uma participação ativa de antropólogos e sociólogos.  

 

Design humanitário representado na ambulância de bambu, na África

Design humanitário representado na ambulância de bambu, Bambulance, na África

Como ficaria o Brasil sob essa perspectiva?

O Brasil começa a ter reconhecimento e certo fortalecimento do design nacional, mas ao mesmo tempo, há um exército de designers estrangeiros ansiosos por invadir nossas favelas para “resolver nossos problemas”.

Designers na Índia e na China começam a reconhecer a qualidade e a soberania do seu próprio design, em um processo de valorização do design local, questionando se realmente essa ajuda externa é necessária e, até sendo contra em alguns casos. Como eles, devemos reconhecer nossa riqueza cultural, a diversidade e a qualidade do design nacional – antes de tudo.

Contribuições estrangeiras são bem-vindas, talvez em alguns casos até necessárias, mas como afirmaram alguns designers de países emergentes, temos muito a ensinar também. Como demonstrou o concurso “Design for the First World”, como um possível caminho inverso, com os designers da periferia subdesenvolvida resolvendo problemas do centro desenvolvido.  

Tapete de sucata para limpar lama dos pés no jardim, criado na África

Tapete de sucata para limpar lama dos pés no jardim, mostrado em feira na África

É claro, que o problema é mais complexo, de natureza estrutural, e deve existir uma solução de sistema, de causa, não de remediação, por meio do design. É válido projetar abrigos ecologicamente corretos para o pessoal de rua apenas e não reestruturar o sistema para oferecer trabalho e uma vida digna? É necessário, então imprimir uma mudança de paradigma político-governamental também e não apenas no âmbito ambiental, social ou econômico.

Essa rica discussão do design humanitário atualmente permite uma reflexão muito importante e interessante para o momento histórico que o Brasil vive, e não se trata de julgar quem está certo ou errado, mas de aprender de experiências já vividas.

Links:

Matéria de Bruce Nussbaum

http://www.fastcodesign.com/1661859/is-humanitarian-design-the-new-imperialism

Respostas à matéria

http://changeobserver.designobserver.com/entry.html?entry=14498

Moinho de vento feito de sucata

http://williamkamkwamba.typepad.com/

Afrigadget

http://www.afrigadget.com/

Marcio C. de C. Dupont é designer de produto especialista em design e consumo sustentáveis e autor do blog marciodupont.blogspot.com

Blog: http://marciodupont.blogspot.com

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Comentários (9)

 

  1. Alda Duarte disse:

    Oi Márcio
    Muito bom e pertinente o seu artigo!
    - Acho que as vezes, o design se perde em questões semânticas e classificatórias. Há pouco mais de 5 anos, surgem “stakes” como design social, design socioambiental, ecodesign, humanitário, etc…

    Como todo designer ingênuo e idealista, eu e muitos de nós queremos projetar soluções para um mundo melhor, independente de bandeiras ou fronteiras. Daí surgem os sociólogos, antropólogos, cientistas sociais com suas análises de discurso e chegam logo a essas questões geopolíticas que carregamos através de nossos “statu quo”. E nesse duelo acadêmico entre nossas intenções de designers e a posição que ocupamos aos olhos dos analistas, quem perde é a sociedade com um todo, pois parece que as conclusões pendem para um conservadorismo antropológico em que o olhar estrangeiro nunca é bem vindo, e quando interfere ou influencia nos processos socioculturais do 3o mundo sempre cai nas garras desses clichês ideológicos. Da mesma forma, seguem as ongs internacionais ambientalistas aos olhos de militantes nacionalistas, quando intervem em assuntos de interesse nacional, como queimadas de florestas e preservação de biodiversidade. O mesmo raciocínio não impacta tanto quanto em ações humanitárias como Cruz Vermelha, e ongs de Direitos Humanos. Porque nesses casos, subtende-se que se tratam de interesses universais, portanto transnacionais e transfronteiriços.
    E por falar em contemporaneidade, nada mais frequente que ações transnacionais impactando em territorialidades distintas nesse momento histórico.
    Mas, considerando o fortalecimento das culturas regionais, as soluções quando partem dos locais sempre serão mais incisivas e significantes para o desenvolvimento social, porém acontecem num ritmo em que poucas perspectivas se concretizam. Nesse contexto, sim, é interessante que se fomente o design local .- Mas quem o fomentará? Em quanto tempo construirá esse processo?
    Tudo bem, retiram-se os estrangeiros humanitários e quem fica? ou melhor quem faz? Os designers brasileiros, em termos quantitativos, tem se interessado pela realidade local de pobreza? – Uso o termo pobreza porque é o que se refere a humanitário. – E nós designers brasileiros também somos estrangeiros dentro dessa esfera. E os que resolvem fazer design para base da pirâmide são patrocinados por quem? Quem fizer sempre será o colonialista, o elitista transferindo seus valores de classe…
    Nesse cenário analítico, não há como fugirmos desses jargões, mas dentro da perspectiva do Design, somos profissionais que projetamos soluções para os interesses locais, respeitando os valores locais e tentando mergulhar neles para atingir melhores resultados. A História da Humanidade é permeada de indivíduos transnacionais que modificaram culturas locais através de seus engenhos, com muitos bons resultados incorporados por todos nós ao longo do globo. O problema não me parece ser as ações em si, mas o como são realizadas.

  2. Sou aluno do curso de desing de interação em Belo Horizonte, MG, transmite este artigo a minha turma para também estarmos voltados ao Humanitário, e como demonstração disso somos no Brasil os únicos voltados ao material de combate ao fenômeno multifacetado o ANALFABETISMO FUNCIONAL. Uma atividade voltada a consolidar este grande caminhar em busca da esperança e dignidade humana voltada a compreensão do ser humano no seu mais recôndito ato de vida, o PENSAMENTO. Quero continuar recebendo sempre estes artigos. Grato por poder compartilhar comigo esta matéria que tenho certeza vai ser de grande valia para nós também do PACI.

  3. Leo Oliveira disse:

    Muito bom o texto, me fez refletir bastante.

    Acredito que uma iniciativa como o projeto Design Possível, do prof° Ivo Pons, que trabalha a inserção do Design em comunidades de baixa renda, é um exemplo da boa sinergia que pode existir entre as duas partes. Com um trabalho colaborativo, designers e comunidade sentam à mesa para projetar soluções locais. O que se observa, a partir disso, é que as soluções estão configuradas dentro das perspectivas locais, sendo mais aceitas pelos indivíduos, despertando nesses uma consciência e interesse pelas benesses trazidas pelo Design.

    A lição que fica é a potencialidade que ganham os projetos ao abolirem as soluções ‘de cima para baixo’, valorizando assim as ações participativas e colaborativas.

  4. Nei Zuzek disse:

    Marcio, legal o artigo. Mas, você pode me dizer quais são os projetos de design atualmente em andamento para melhorar o Brasil? Para mim não adianta fazer bobagens como bambulancias ou moinhos de sucata, e sim soluções reais e duradouras: erradicar favelas, combater o analfabetismo de verdade, promover a segurança pública através da melhora do espaço público: iluminação, limpeza, sinalização, promoção dos negócios na via pública, cuidado com o centro das grandes capitais. Os designers brasileiros estão participando ativamente nisto?

  5. Koiti Egoshi disse:

    Márcio, parabéns pelo seu post de altíssimo nível!

    Como “outros afirmaram”, “o importante é fazer algo, bem ou mal, mas fazer”. E agitar, fazer polêmica para fazer acontecer algo em prol da felicidade geral e paz universal. É nesse sentido que Nussbaum deve ter criticado o Design Humanitário: a intenção é louvável, mas a forma de realizar deve ser aprimorada, uma vez que “essa ajuda humanitária dos designers e fundações americanas não foi bem recebida, sendo de alguma maneira contestada”. Foi contestada porque de alguma forma o Design Humanitário faz parte de todo um processo de assentamento de Selva de Pedra sobre Selva de Mato – que deve ser realizado sob a égide da Sustentabilidade. Por falar nisso, acabei de lançar esta semana, meu novo livro “Três Metas Factíveis de Sustentabilidade” que está anunciado no site http://www.agbook.com.br/book/29071–TRES_METAS_FACTIVEIS_DE_SUSTENTABILIDADE_!

    No meu blog http://www.egoshiblogger.blogspot.com exporei esta minha partição e análise sobre o interessante e importante Design Humanitário!

    Um forte abraço!

    Egoshi

  6. Adriana Pacheco disse:

    Bom Márcio,

    Finalmente estamos falando nesse assunto, e acredito que o mais importante e realmente providencial é a inversão e a valorização da capacitação local para resolução de problemas locais. Ao meu ver, parcerias com entidades estrangeiras podem ser bem vindas desde que se tenha o objetivo de realmente solucionar uma problemática local respeitando todos os seus aspectos sócio culturais. Somente um nativo sabe qual é a sua real necessidade dentro de seu ambiente sócio cultural. Muito mais do que soluções paliativas onde “gadgets” se tornam o grande centro das atenções, iniciativas humanitárias devem agir na totalidade, na raiz do problema, e é aí onde nós designers esbarramos nas fronteiras políticas e nos vemos na complexidade dos caminhos que devem ser percorridos para improvisar questões de natureza estrutural. Porém, faz parte da missão ultrapassar essas barreiras e utilizar a experiência e “co-laboração” de membros locais para soluções locais.

  7. Alda Duarte disse:

    …E daí podem surgir as ferramentas de fomento e co-laboração técnica.
    Caimos novamente, na discussão do como fazer, que tipos de ação podemos coordenar, ou aceitar do ponto de vista ético e cultural. Acho que esse debate poderia ser ampliado para outras esferas onde possamos discutir essa co-laboração de designers em iniciativas humanitárias ao longo do globo, e cobrar das entidades internacionais este entendimento profissional, de iniciativas que fomentem o Design local em toda sua amplitude contextual, ao invés de recebermos designers estrangeiros recrutados para resolver nossos problemas.

  8. Tatiana Gomes disse:

    “É claro, que o problema é mais complexo, de natureza estrutural, e deve existir uma solução de sistema, de causa, não de remediação, por meio do design. É válido projetar abrigos ecologicamente corretos para o pessoal de rua apenas e não reestruturar o sistema para oferecer trabalho e uma vida digna? É necessário, então imprimir uma mudança de paradigma político-governamental também e não apenas no âmbito ambiental, social ou econômico.”

    É claro também que o design não é e nem será o “salvador da pátria ” (e muito menos da humanidade). Nem por isso entendo que ideias como “bobagens como bambulancias ou moinhos de sucata ” como Nei Zuzek se referiu devam ser depreciadas.
    Como mostra o artigo, para aquele povo essa ideia foi bastante válida, o design foi realmente uma solução.
    Se ficamos bitolados no pensamento de que a origem dos nossos problemas é mais profunda e tão somente divagar sobre as questões teóricas “político-governamental- ambiental-social-econômicas”, não sairemos dessa inércia, não acham?
    É aquela já mais que batida historinha que para aquele pequeno local, mesmo que para aquelas poucas pessoas, foi feita a diferença através de alguma ação e que o esse design humanitário seja mais um instrumento para tanto.
    A propósito, também gostaria de saber o que está sendo feito aqui Brasil, postem aqui…
    Obrigada!

  9. dr.carlos alberto catanejo disse:

    precisamos de alimentos,agasalhos,meedicamentos,móveis,materiais de construção e computadores para a associação da favéla onde sou responsavel.grato
    bispo m dom carlos alberto catanejopáz,preciso de ajuda de apoio humanitario á favéla de pirituba-sp- grato tem 200 moradores carentes de ajuda visitem a favélapáz,preciso de ajuda de apoio humanitario á favéla de pirituba-sp- grato tem 200 moradores carentes de ajuda visitem a favéla bispo m dom carlos alberto catanejo

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