A ‘‘invenção da tradição’’ e o papel do design

Postado em: 01 / 07 / 2011

César Queiroz

César Queiroz

César Queiroz

Nada parece mais antigo e, enraizado em um passado imemorial, que a pompa que circula a monarquia britânica em suas cerimônias públicas. Mas, segundo Hobsbawm, essa pompa, cuja aparência e símbolo remetem ao passado remoto é, na verdade, produto do final do século XIX.

Interessante, não? O que é visceralmente sentido como algo originado no passado remoto é, ao contrário, invenção recente, cujas credenciais apontam para tal passado que, na verdade, inexiste.

Roper, ao retratar a “invenção da tradição” na constituição da nação escocesa, aponta três aspectos importantes no processo:

1. A invenção do épico poema Ossian

2. A invenção do Kilt

3. A invenção do Tartan

O poema Ossian que, supostamente foi “descoberto” em 1760, popularizou a ideia de que a cultura escocesa é distinta e antiga. No entanto, essa cultura não existiu. Antes do final do século XVII tal grupo de pessoas era excedente da Irlanda. Partilhava, pois, da nação irlandesa.

Da mesma forma, o kilt e o Tartan, aparatos nacionais que distinguem hoje os escoceses, são produtos modernos e não se originaram na antiguidade como se acredita. O Kilt foi inventado por um industrialista de nome Thomas Rawlinson e sua rápida adoção se deu em 1768. O Tartan, representante de famílias como é conhecido hoje, nunca existiu no passado com essa função.

 

Da esq. p/dir.: Ilustração do poema Ossian, kilt e tartan, invenções escocesas

Da esq. p/dir.: Ilustração do poema Ossian, kilt e tartan, invenções escocesas

A velha história: muitas tradições são, de fato, invenções.

Uma coisa é certa e previsível na construção de grupos, sejam eles nações, instituições etc. As pessoas, intuitivamente, criam bandeiras, desenvolvem rituais e cerimônias, criam hinos, uniformes, imagens, símbolos, heróis, histórias e, quando podem, monumentos. Inventam-se tradições.

Olins cita o caso da Guerra civil Americana. Em pouco tempo, meses ou quase semanas em 1860, quando se deu início a recessão, toda a estrutura dos confederados, que buscava independência da união, estava posta. Rituais, símbolos, uniformes, bandeira, hino, constituição, possibilitaram criar uma coesão, desenvolver novos e destruir antigos lealismos, marcar territórios, reforçar novas idéias e criar uma nova forma de fazer e de enxergar.

Em 2008, por exemplo, residentes do Kosovo celebraram sua independência com a nova bandeira. Unilateralmente, declararam independência da Sérvia.

 

Bandeira do Kosovo

Bandeira do Kosovo, que unilateralmente declarou independência da Sérvia

Toda essa parafernália tangível constitui o reflexo, a ponta visível de mudanças profundas em transformação. Visões, sonhos, forma de olhar, valores, normas, aspirações, ideais. Ao mesmo tempo em que reflete o conjunto de imagens e símbolos, reforça e impulsiona as mudanças.

Essas “tradições inventadas”, como diz Hobsbawm, “são um conjunto de práticas normalmente direcionadas, tacitamente ou não, por regras aceitas de natureza simbólica que buscam inculcar certos valores e normas de comportamento por repetição e que implicam, automaticamente, continuidade com o passado.”

Elas buscam estabelecer conexões com o passado histórico, mas essas conexões são, na melhor das hipóteses, tênues e frágeis. Elas forjam, suportam e estruturam inovações de pensamentos, visões e ideais, quando conectam de forma inventada com o suposto passado histórico. Dessa forma, legitimam as mudanças em andamento. A parafernália visível, simbólica e comportamental, portanto, exterioriza-se e, assim, reforça as mudanças em andamento e, ao mesmo tempo, busca estabelecer “conexões” com o passado, que sabemos não existir.

O interessante, diz Olins, é que as ferramentas usadas para projetar novas empresas ou reposicionar as existentes, são as mesmas usadas para projetar nações em surgimento, lembrando, claro, a diferença de tecnologia de hoje. Afinal, organizações, assim como nações, são grupos de pessoas.

A ponta visível das mudanças em andamento é a exteriorização de um sistema compartilhado de significados, que Fons Trompenaars chama de cultura. Ela dita como agimos, em que prestamos atenção e o que valorizamos. É, no final das contas, um forte gerador de comportamentos.

Na camada exterior da cultura residem os produtos e os artefatos explícitos. Linguagem, comida, bebida, casas, monumentos, agricultura, moda, arte, cerimônias e rituais. No caso específico de empresas, incluímos sua arquitetura, cores, formas, símbolos, documentos, jeito de conversar e se portar, vocabulário e histórias.

A camada intermediária, não visível, é constituída pelas normas e valores. Norma é o senso compartilhado de um grupo do que é certo ou errado. Valor é o senso compartilhado do que é bom ou ruim. Enquanto o risco é esperado em uma empresa, enquanto em outra é esperada essencialmente a estabilidade. Ou, enquanto o certo é encarar desafios, em outros contextos, é permanecer na zona de conforto.

E, por fim, o núcleo ou camada interna é composto pelas premissas e pressupostos de um grupo que direcionam a forma peculiar de interpretar as coisas. Em muitas organizações, por exemplo, pressupõe-se que o desenvolvimento humano e organizacional se dá mediante situações desafiadoras, enquanto em outras, que esse desenvolvimento se dá mediante contextos seguros e estáveis. 

Modelo de cultura de Trompenaars

Modelo de cultura de Trompenaars

Essa cultura é a cola, o cimento que une e conecta as pessoas e equipes. Ela confere unidade, representa linguagem, símbolos, valores, normas, pressupostos compartilhados. Ela é a resposta a um dos pré-requisitos de construção identitária: as pessoas desejam pertencer, precisam saber o que elas representam e a quem devem lealdade. Entra, assim, a força do simbolismo. Dificilmente, haverá grupos eficazes de pessoas sem que haja pertencimento e propósito.

Eis, portanto, o importante papel da cultura e seus símbolos. Nas palavras do Olins “a organização funciona apenas se as pessoas possuem um senso de pertencimento compartilhado, se são orgulhosas da empresa e do que ela faz, se compartilham uma cultura comum, se existem acordos sobre o comportamento aceito e o não aceito, se entendem, explicita e implicitamente, os objetivos e ambições do negócio como um todo.”

Embora não possuam bandeiras ou hinos, as empresas possuem uma logo e um nome. Cultuam símbolos, rituais, histórias, heróis e mitos. Têm, tácita ou explicitamente, códigos de conduta, normas, valores, pressupostos. Possuem formas de olhar, de ser, de pensar, paradigmas. Se, de um lado, tem-se a identidade nacional, do outro, a identidade corporativa. A invenção da tradição é assim, a chave para o sucesso das marcas.

Nesse contexto, qual o papel do design?

Acredito que, no mundo corporativo, no qual o fim não é a autoexpressão do artista, mas o cumprimento da missão do negócio, o design tem papel fundamental na expressão do que torna a organização única e relevante: seus valores, crenças, visão, promessa, aspirações, ambições, forma de olhar, ou seja, a identidade corporativa.

Falando a mesma coisa, porém, na linguagem do branding, o design é responsável por representar a idéia da marca, sua arquitetura e personalidade: a essência corporativa. O design, nessa perspectiva, é a essência corporativa representada em imagem, som, textura, cheiro e sabor.

Assim a marca ganha vida e, não somente conecta, mas também engaja emocionalmente as pessoas, sejam elas internas ou externas à organização. O design é o motor das emoções. Estimula as pessoas, possibilita experiências reais com a marca e, principalmente, estabelece com elas fortes laços emocionais, afinal parte da comunicação humana é inconsciente e não verbal. No fundo, os símbolos movem as pessoas, refletem e ao mesmo tempo fortalecem quem é, de fato, a empresa.

Cesar Queiroz é sócio e estrategista da 2DA Branding & Design

Bibliografia

Hobsbawm, Eric and Ranger, Terence. The invention of tradition (1983).

Olins, Wally. Corporate Identity – Making business strategy visible through design (1989).

Trompennars, Fons and Hampden-Turner, Charles. Riding in the waves of culture (1998).

Compartilhe

Be Sociable, Share!

Comentar