É levantando bandeiras que se faz nascer uma cultura de marca
Postado em: 30 / 03 / 2012
César Queiroz
“E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa. Face escaveirada, olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão” (Euclides Cunha, Os Sertões, 1902). Este é o peregrino.
Nasceu em Quixeramobim, Província do Ceará, em uma família, segundo João Brígido, amigo de infância, numerosa de homens válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e de pequena criação, que se envolveram em conflitos com os poderosos Araújos, família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da Província. Sua infância é sofrida. Extermínio de parentes pela família Araújo. Alcoolismo do pai e os maltratos da madrasta. Diziam, no entanto, que era um moço sério, trabalhador, honesto, religioso e de boa caligrafia. Cursara as aulas de latim de seu avô, o professor Manoel Antônio Ferreira Nobre. Estudou também Português, Aritmética, Geografia e Francês.
O pai morre. Ele muda constantemente de cidade e de profissão. Atua como negociante, professor, balconista, advogado provisionado. Teve filhos. Sua esposa o traiu com um policial. Muitos fracassos comerciais e frustrações, muda novamente. Reencontra seu amigo de infância e escritor João Brígido e declara: “Vou para onde me chamam os mal aventurados”. Dizia ter uma promessa a cumprir, erguer vinte e cinco igrejas, longe do Ceará. Assim fala Honório Vilanova, sobrevivente de Canudos:
Nunca mais pude esquecer aquela presença. Era forte como um touro, os cabelos negros e lisos lhe caíam nos ombros, os olhos pareciam encantados, de tanto fogo, dentro de uma batina de azulão, os pés metidos numa alpercata de currulepe, chapéu de palha na cabeça. Era manso de palavra e bom de coração. Só aconselhava para o bem. Nunca pensei, eu e compadre Antônio, que um dia nossos destinos se cruzariam com o desse homem.
Uma tarde, ele foi embora do Urucu, caminhando vagarosamente, levando no braço o borreguinho que meu irmão lhe dera. Ficamos olhando a sua figura esquisita, durante algum tempo, do alpendre. Até que sumiu na estrada, não para sempre.
Caminhava por toda parte do Sertão. Conhecia cada canto e seus segredos. Conheceu face a face o sofrimento do povo. Rezava. Fazia sermões. Dava conselhos, em uma época de extrema miséria e grande seca por vir. Seu comportamento não era bem tido pelos latifundiários, e nem por alguns líderes da igreja. O acusaram de matar sua mãe. Foi preso, apanhou e teve os cabelos raspados. A igreja o proibiu de pregar. Não encontraram provas e voltou a peregrinar. A abolição da escravatura iniciou e assim escreve o peregrino:
(…) sua alteza a senhora Dona Isabel libertou a escravidão, que não fez mais do que cumprir a ordem do céu; porque era chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante estado, o mais degradante a que podia ver reduzido o ente humano; a força moral (que tanto a orna) com que ela procedeu à satisfação da vontade divina constitui a confiança que tem em Deus para libertar esse povo, não era motivo suficiente para soar o brado da indignação que arrancou o ódio da maior parte daqueles a quem esse povo estava sujeito.
Gostava do povo. Não apenas tinha consciência política. Ergueu-se contra o regime. É proclamada a república, mas em nada adiantou. A terra e o poder continuaram nas mãos da elite. E assim também duramente continuaram seus sermões:
Agora tenho de falar-vos de um assunto que tem sido o assombro e o abalo dos fiéis, de um assunto que só a incredulidade do homem ocasionaria semelhante acontecimento: a República, que é incontestavelmente um grande mal para o Brasil que era outrora tão bela a sua estrela, hoje, porém, foge toda a segurança, porque um novo governo acaba de ter o seu invento e do seu emprego lança mão como meio mais eficaz e pronto para o extermínio da religião.
No sertão, em plena seca, ergue templos sagrados em lugares esquecidos e abandonados. Ergue também açudes. Ao seu lado tinha os mestres de obras Manoel Faustino e Manoel Feitosa. Compadece das pessoas e de suas necessidades. Toca corações. O nome já muito falado se tornava cada vez mais forte: Antônio Conselheiro. Seus seguidores, os conselheiristas.
Inicia os conflitos com a força militar. Em Masseté, armados de garruchas, cacetes e espingardas de caça reagiram ao ataque da polícia. Conselheiro percebeu que era hora de partir. A pressão do governo republicano, da igreja e dos latifundiários tendia a crescer. Reúne então seus seguidores e parte sertão a dentro em busca da “Terra Prometida”.
Chega então ao lugar. Seu nome: Canudos (vinha do nome de uma planta Canudos-de-Pito, boa para fumar longos cachimbos), em pleno coração da Bahia, em plena vegetação de caatinga, à beira do rio Vaza-Barris e rodeado de morros os quais se chamavam Cambaio, Caipã, Canabrava, Cocorobó, Poço de Cima, Saui e Angico.
Batiza o lugar, afinal é sagrado. Dá-lhe um novo nome: Bello Monte. A nenhum pertencia e era de todos, assim ensinava Conselheiro. Imediatamente cavaram trincheiras. Desejavam ardentemente proteger a liberdade, a justiça, os ideais e crenças que uniam o povo. Era necessário um livro e assim foi escrito pelo líder: “Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo para a Salvação dos Homens”.
Canudos tornou-se o segundo maior município da Bahia, tinha ¼ da população de Salvador. Diziam que todo o sertão queria ir para Bello Monte. Como afetava a economia do estado (pois muitos trabalhadores abandonavam as terras onde trabalhavam) não demorou a reagir a elite agrária nordestina. O governo também não se contentara com o fato, pois era uma nação dentro de outra sem o pagamento de impostos.
Em Bello Monte, a praça da igreja era o centro espiritual e político da comunidade. Moravam ali os líderes em casas de telhas. Ao redor foram se formando becos entrelaçados, levantando casas de taipa. Muitos diziam que lá “corria rios de leite e as barrancas eram de cuscuz”. Novos grupos iam chegando. Muitos ex-escravos e até índios Kaimbé e Kiriri se agregaram.
Atribuições eram expedidas. Antônio Vilanova cuidava da economia canudense e também era uma espécie de “juiz de paz”. Fazia também parte dos dirigentes das operações militares e sob a sua guarda ficavam as armas e munições. A defesa pessoal de Antônio Conselheiro era formada por 600 homens que também eram responsáveis pela segurança da cidade. Todos usavam uniformes e eram chamados de Guarda Católica. Havia também os que cuidavam do plantio e os que construíam.
Impressiona a autenticidade e a originalidade na formação da comunidade de Bello Monte em torno da figura de Conselheiro. Como pode haver um grupo do qual os membros entregam a si mesmos em lutas e guerras sangrentas (que duraram mais de um ano) contra o regime e a cultura predominante?
De um lado tem-se o invisível em Canudos. O líder acreditava, levantava a bandeira e agia. Ele era a manifestação de um “chamado”, de uma visão, de uma causa que girava em torno da liberdade e do fazer o bem. O fato de serem contra o pagamento de impostos refletia a crença que partilhavam. Não era sobre impostos, era sobre a justiça, sobre levantar e prosseguir adiante com suas crenças. E o movimento não era nem tampouco sobre a pessoa de Antônio Conselheiro e sim o que ele representava.
O que significava o líder senão uma resposta aos anseios coletivos? Como não era sobre ele, poderia ter sido João Conselheiro, André Conselheiro. Porém, foi Antônio que em sua história levantou, ergueu, viveu e colocou para fora suas crenças e como elas respondiam aos anseios e desejos dos sertanejos e ao contexto em que viviam: a intensa miséria, a grande seca de 1877 (que trouxe consigo a morte de mais de 300 mil sertanejos), a abolição da escravatura, a monarquia e suas contradições e adiante a republica em 1889 que em nada deu poder aos cidadãos. O palco político, social e econômico estava então montado.
A cultura ortodoxa resultado do sistema econômico latifundiário (poucos recursos para muitos, e muitos recursos para poucos) não fazia sentido e era questionada por Conselheiro: refletia o maltrato, a discriminação e a não valorização do ser humano. Era preciso uma ruptura social, e o início de uma nova forma de viver e enxergar o mundo e as pessoas.
As crenças, valores e ideais do líder iam de encontro à ruptura. Pulsão constante a romper a cultura ortodoxa do contexto. Inovou, portanto, a forma de viver ao criar uma comunidade em que tudo era de todos. Cada vez mais pessoas se juntavam em torno de Conselheiro. Eram discipuladas, ensinadas. A comunidade crescia. Era unida, direcionada pela liberdade e estimulada a fazer o bem. Os que agregavam sentiam parte de algo maior. O fazer era conjunto, como também o construir e o plantar.
O mundo é pura crença. Canudos escancara esse fato. Agir pressupõe acreditar. Pressupõe valoração, construção de sentidos pela interação social. No mais profundo da construção de grupos a crença é a força constante e invisível que move e direciona pessoas. É o alicerce do qual surgem expressões que comunicam quem é o grupo. Como diz Peterson:
Nonetheless – to live, it is necessary to act. Action presupposes belief and interpretation (implicit, if not explicit). Belief has to be grounded in faith, in the final analysis (as the criteria by which a moral theory might be evaluated have to be chosen, as well).
Do outro lado tem-se o visível. É natural na formação de um grupo, exteriorizar (em imagens, palavras e ações) suas crenças e ideais. No caso de canudos o lugar foi batizado mediante ritual liderado pelo Conselheiro. Ganhou um novo nome, Bello Monte. Antes, porém, o nome Antônio Conselheiro já era forte, único e compartilhado tanto entre os membros do grupo quanto fora dele (latifundiários, líderes católicos e o governo).
No centro da comunidade localizava-se a igreja e a praça. Ponto de referência e junto com a cruz símbolos dos ideais e fundamentos da comunidade. Se todo lugar era sagrado ali era lugar de reverência, de onde emanavam os valores e as crenças em forma de rituais e sermões que direcionavam os membros (tudo era de todos). O povo se reunia para ouvir e juntos entoavam cantigas e hinos celebrando quem era e o que representava.
Como todo grupo de pessoas, as crenças direcionam regras sociais sejam elas explicítas ou não. Em Canudos dividiam os bens, os vícios da bebida e da carne eram proibidos. As crenças e valores que direcionavam o comportamento dos membros ganhavam vida não apenas nos sermões. Além disso, no livro escrito pelo líder: “Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a Salvação dos Homens”. Ali continha em palavras sua visão sobre a vida humana.
Foi criada uma escola com um professor e uma professora. Lá as estórias eram contatadas aos pequeninos. Uniformes foram confeccionados para a Guarda Católica. As vestimentas e seu estilo foram ganhando forma. As casas eram de taipa e construídas em becos que entrelaçavam. Plantavam e colhiam. A culinária era compartilhada. Criaram cargos para a defesa, o comércio e subsistência da população.
A formação de grupos é sobre isso. É sobre como o comportamento e a aparência simbolizam e refletem a realidade. O invisível que direciona o visível. As crenças, valores e ideais que institucionalizam uma forma de viver, de enxergar o mundo, a si mesmo e aos outros. É a pulsão constante de uma identidade viva, que modela o desenvolvimento da personalidade do grupo. Do intangível que se torna tangível.
A formação de grupos é sobre a autenticidade de ideias, causas, sua relevância para as pessoas e a diferença que fazem no seu dia a dia. É um processo ontológico, de construção do ser. É sobre a formação de identidades e suas expressões que dizem e comunicam sobre as pessoas.
Nós nos agregamos ao redor das marcas e participamos de sua construção. Onde moramos, a roupa que usamos, por onde passamos, o que fazemos com o tempo livre, diz sobre quem somos. O que comemos, onde estudamos ou trabalhamos, o carro que temos, escancaram características sobre nós. Por onde viajamos ou passeamos, nosso tom de voz, gestos, postura, corte de cabelo, esportes que praticamos, são fontes de sentidos que no conjunto funcionam como atalhos. Querendo ou não, comunicam e dizem sobre quem somos.
Esse é o visível. Em si nada significa. Mas ao refletir uma realidade que pulsa a cada segundo, expressa uma identidade. Ganha assim força e relevância e se torna meio pelo qual expressamos os sentidos e significados sobre nós mesmos. Meio pelo qual vivemos e interagimos e percebemos o mundo e as pessoas ao nosso redor.
Isso é sedução pura. Representar ideais e causas autênticas que vão de encontro aos nossos anseios e ao nosso contexto. E essa é a melhor oportunidade que têm as marcas. Serem meios de construção e expressão de identidades, participando do dia a dia das pessoas. Não é sobre benefícios (funcionais, emocionais, apesar de serem importantes) é sobre a participação na construção do ser.
O que está em jogo são pessoas. O pensamento não é matemático, não vem da engenharia. É ontológico, é sobre o ser humano e seus sonhos, crenças e desejos. É sobre a vida humana e seu contexto sociocultural. Sobre relacionar, viver, saborear, ver, encantar. Afinal não somos máquinas, vivemos no mundo da linguagem, de estórias, de encantos, de medos, decepções, conquistas, sucesso, derrotas, aprendizagem, sentimentos.
É assim que as marcas podem seduzir, participando socialmente de nossas vidas. Levantando bandeiras que representam nossos anseios. Qual a relevância de uma visão egocêntrica? (“dobrar o tamanho nos próximos 5 anos”, “ser referencia na área”). Qual o movimento ou revolução que as marcas se propõem? Qual é a estória de transformação?
É levantando bandeiras que se faz nascer uma cultura em torno da marca. Pessoas que aderem e se juntam ao seu redor. Sejam elas funcionários ou clientes ou vários outros interessados. Assim nasce uma identidade corporativa (no caso quando o grupo de pessoas é uma empresa) peculiar, original, autêntica, relevante, enraizada em um contexto sociocultural. De um lado a parte invisível (crenças, valores, sonhos) e de outro a parte visível (comportamento, produtos/serviços, ambiente, comunicação). Sem crenças é impossível quebrar ortodoxias e conectar com as pessoas. E o que devem ser as marcas senão crenças?
Dedicação
Este artigo é uma homenagem ao Wally Olins e seu texto “Corporate Identity: The Myth and the Reality” publicado no segundo capítulo do livro “Revealing the Corporation” editado por John Balmer e Stephen Grayser em 2003. No texto (que é uma transcrição de uma palestra ministrada pelo autor em 6 de dezembro de 1978 para os membros da Royal Society for the Encouragement of Arts) Olins analisa a Revolução Francesa e suas implicações para a gestão de marca. Aponta que, apesar da sua importância fundamental, a identidade corporativa não é entendida em sua profundidade e tida apenas como elementos gráficos.
Referências bibliográficas
CUNHA, Euclides, 1902. Os Sertões
PETERSON, B. Jordan (1999). Maps of Meaning: The Architecture of Belief
OLINS, Wally (1978). Corporate Identity: The Myth and the Reality.
César Queiroz é estrategista de marca.