Derretendo muralhas de gelo nas grandes corporações
Postado em: 31 / 08 / 2012
César Queiroz
Há mais de 120 anos organizações foram legalmente reconhecidas como pessoas. Genial! Por que não chama-las então de pessoas jurídicas? E assim o título pegou depois de muitas opiniões judiciais e tratados. Claro que não fazia sentido tal noção. Legalmente as grandes corporações eram “criações do estado”. Com tal evento se tornaram “entidades naturais ou morais”, sujeitos ativos ou passivos de direito.
Mas organizações são pessoas?
Como pôde um corpo jurídico conferir “humanidade” às grandes corporações como se tivesse poderes divinos? Corporações não possuem sentimentos, não possuem almas, era o grito de muita gente. Esse grito pegou fogo a partir das fusões de 1895 a 1904 quando mais ou menos 157 negociações trouxeram o fim de 1800 corporações. As queixas e refutações proliferavam. Inúmeros livros foram publicados:
“The Heart of a `Soulless Corporation’” (1908),
“Corporations and Souls” (1912),
“United States Steel: A Corporation with a Soul” (1921),
“Puts Flesh and Blood into `Soulless Corporation’” (1921),
“Refuting the Old Idea of the Soulless Corporations” (1926),
“Humanizing a `Soulless Corporation’” (1937).
Assim continuou a busca ardente das grandes empresas em provar que têm alma. Mas como conseguir o favor humano e a legitimidade sem os relacionamentos pessoais que sempre caracterizou os negócios? No lugar de relacionamentos, enormes empresas, operando inúmeras fábricas com muitos mil empregados.
Imagine a cena:
A máxima precisão possível. Intensa otimização de ações. Minimizar ao máximo qualquer ambiguidade. Processos altamente racionais. Procedimentos cuidadosamente orquestrados. Sistemas hierárquicos de supervisão e subordinação. Organização em torno de uma unidade de comando. Tal modelo não lembra o funcionamento de uma máquina? E como pode ter alma uma máquina? Como pode ser humana?
Está aí o grito não apenas contra o título “pessoas jurídicas”, mas contra a pedra de gelo que eram e ainda são muitas grandes empresas. É claro que esse modelo de regras e controle trouxe benefícios. Milhões de pessoas tiveram acesso a milhões de produtos. Por um lado a gente deve muito à turma Taylorista e ao método científico, mas técnicas e ferramentas não caracterizam empresas, não movem pessoas e negócios. Olha que genial esse relato do Gary Hamel, especialista em gestão de negócios, no programa Conta Corrente, da Globo News: http://tiny.cc/993rjw Este vídeo fez-me lembrar de um pedaço de um texto do Olins, de 1978 que, traduzindo em minhas palavras, diz assim:
“As corporações modernas implicitamente acreditam que podem controlar seu próprio destino. Compram constantemente das grandes consultorias de gestão todo tipo de técnica e ferramenta administrativa que entra em vigor. Acreditam que esses sistemas quando suficientemente injetados na rotina das empresas, elas se comportarão de forma racional, eficiente, lógica e organizada.
O problema é que esse princípio ignora o fato de que o mundo é um caos, um turbilhão constante em que as pessoas se comportam de forma emocional. É impossível prever com tal certeza o que vai acontecer amanhã. Em contrapartida, as empresas não têm outra opção senão tentar controlar seu destino. Muitas decisões envolvem grandes somas de dinheiro que não podem ser encaradas de forma fantasiosa. Exigem informações precisas e atualizadas. Dessa forma acabam injetando técnicas e mais técnicas no dia a dia das empresas.”
Esse mito de que é desejável, mas impossível controlar o futuro escancara claramente o porquê grandes empresas buscam se mostrar sem rugas, que tudo sabem, que tudo veem. Bancam super-heróis. Erguem muralhas. Infelizmente muitas delas continuam presas a esse mito. Perderam o contato direto e o tato com as pessoas. A pessoalidade evaporou. Pessoas se tornaram figuras impessoais em um gráfico financeiro. Mostram-se superpoderosas e não como realmente são, com suas forças, fraquezas, erros, acertos e sonhos.
Tais empresas parecem mais uma parede de gelo do que um grupo de pessoas ligadas por uma razão. Talvez seja por isso que muitas nos soam estranhas. Não dá para surgir vínculos dessa forma. Não dá para juntar pessoas assim.
O lamento de 1909, de Edward Hall, então vice-presidente da AT&T, continua ainda muito atual. “O público não nos conhece… Nunca nos viu, nunca nos encontrou, não sabe onde moramos, quem somos, quais são nossas qualidades. Sabe apenas que somos uma corporação, e para as pessoas uma corporação é uma coisa.”
Cadê a alma das empresas?
Quem há mais ou menos 150 anos levantou bandeira a favor da pessoalidade dos negócios? Quem por essa razão ganhou imensa legitimidade social e moral? Assim nasceram as lojas de departamento.
Elas cultivaram em sua origem e história maneiras e jeitos próprios. Cada uma tinha sua forma de ser e portar. Pareciam pessoas. Não ganharam, como as corporações, o título “empresa sem alma”, pelo contrário, eram tidas quase como bens civis que uma cidade jamais poderia ficar sem.
John Wanamaker, por exemplo, fundou a Wanamaker, primeira loja de departamentos da Filadélfia nos Estados Unidos. Ele amava arte e história. Sua loja era muito usada em apresentações de corais e orquestras e tida como galeria de arte. John perambulava constantemente por toda a loja, mantinha contato direto com os clientes. Além disso, ministrava aulas de história e organizava exposições sobre Napoleão, reis, as belezas do mundo, a revolução francesa.
Já o espírito da Marshall Field parecia mais uma aristocracia. Field seu fundador era reservado, evitava o holofote. Detalhista ao máximo percorria toda a loja e fazia questão que cada atividade e contato com os clientes funcionasse como a precisão de um fino relógio. Sua presença discreta, educada, encantava as mulheres. O ambiente da loja tinha um ar de luxo e respeitabilidade.
Outras lojas, como a Filene & Company, Siegal Cooper e Macy’s, também projetavam um jeito próprio de ser e se portar por meio da arquitetura, mobília, estilo de mercadorias, políticas de cliente, comportamento, comunicação.
Dessa forma tais empresas eram sentidas como pessoas. Cada uma tinha um jeito de ser único e peculiar. Eram como imãs, vínculos surgiam no dia a dia. Expulsavam, portanto, toda percepção relacionada às grandes corporações. Claro que tinham outras razões que contribuíram para isso. As lojas na época não cresceram por fusões e aquisições, não exerciam monopólio, nem fabricavam produtos. E também o negócio favorecia o contato humano e as relações pessoais no dia a dia.
As pessoas de volta ao seu lugar
Sim, empresas são e devem ser pessoas. Por que não respirar e comportar como uma pessoa? Ter um rosto como o de uma pessoa? Por que não ter um coração que bate forte? Por que não ter veias que carreguem sua razão de existir?
Por que muitas empresas mais parecem máquinas do que pessoas juntas por um propósito? Por que parecem distantes de nossa realidade? Por que não nos causam nenhuma identificação?
Por que não se portam da forma como são? Com suas forças e fraquezas, qualidades e defeitos, conquistas e derrotas. Que lutam, suam, batalham, ficam alegres, emocionam e comemoram.
É assim que se tornam desejadas. É assim que vão ao nosso encontro, que nos chamam atenção, nos tocam e nos causam identificação. É assim com seu jeito de ser que mexem conosco por meio de seu comportamento, de sua comunicação, de seu ambiente e dos produtos e serviços que desenvolvem.
Quando compreendem o porquê existem e essa razão é forte o suficiente para juntar pessoas é quando a guarda baixa, o gelo derrete, a segurança aumenta e os vínculos surgem. E não é assim que se tornam totalmente diferente de outras empresas, com seu jeito único e peculiar de ser?
Não são processos, sistemas e técnicas que tornam uma empresa atrativa, admirada. São as crenças e valores que juntam pessoas, que trazem o sentimento de fazer parte e uma clara sensação de propósito. É assim que celebram pessoas e é assim que se tornam únicas, amadas, admiradas, desejadas.
Bibliografia
MARCHAND, Roland. Creating the Corporate Soul: The Rise of Public Relations and Corporate Imagery in American Big Business. University of California Press. 1998.
OLINS, Wally. The corporate personality: An inquiry into the nature of corporate identity. Mayflower Books. 1978.
César Queiroz é estrategista de marca, co-criador do Fieldwork Group. Apaixonado por descobrir o que é único e relevante em pessoas e empresas.