As pessoas e sua identidade, as marcas e seus criadores

Postado em: 20 / 07 / 2011

 
César Queiroz

César Queiroz

César Queiroz

“Na vida as pequenas coisas com significado valem infinitamente mais do que as grandes sem sentido algum” Carl Gustav Jung

Somos únicos. É o que me vem à mente ao ler Schumacher e vê-lo se expressar sobre nossa distinta capacidade: a autoconsciência. No universo dessa unicidade é muito intrigante cada pessoa com sua história singular, seu próprio caminho, suas experiências, emoções, seu legado. Cada um no íntimo com seus sonhos, visões, desejos. No fundo motivações e valores que inspiram, direcionam, dão forma. Cada um do seu jeito de ser. Cada um com seu jeito de pensar e de sentir, visivelmente mostrando manias, preferências e no mais profundo, aspirações. É curiosa essa combinação de elementos que formam a identidade do indivíduo. Combinação únicas, proprietária de cada ser. Identidade acessada a partir de sinais expressos – ora implícitos, ora explícitos – nas formas de discursos, de comportamentos e de um olhar interpretativo.

 

Tio Sam, que personifica os EUA ajudou a convocar soldados para a I Guerra Mundial
Tio Sam, que personifica os EUA ajudou a convocar soldados para a I Guerra Mundial

Esse emaranhado de características individuais se une e se organiza indo além do indivíduo, criando no coletivo pertencimento e principalmente senso de propósito. Entra em cena a identidade social, grupos de pessoas unidas por alguma razão. A razão para alguns é salvar o mundo. Para outros, a busca da liberdade. Há aqueles que buscam e valorização de uma minoria. E por que não lembrar aqueles que procuram a elevação do bom gosto? Surgem as perguntas: quem somos nós? O que nos define como grupo?

“Entendemos a identidade social como a parte do autoconceito do indivíduo que deriva do seu conhecimento de pertencimento a um grupo (ou grupos) junto com o significado emocional atrelado a esse pertencimento”, diz Tajfel, psicólogo social britânico. As pessoas se identificam e se unem como forma de maximizar distinções; querem sentir e mostrar determinada singularidade. Assim o pertencimento a grupos não só expressa quem são, mas também confere autoestima, fazendo cada um sentir-se bem consigo mesmo.

 

Os grupos giram assim em torno de uma ideia, uma causa, essa centrada no core da identidade coletiva. Não é surpresa que ideias transformam o mundo. Seja para melhor ou pior. Basta lembrarmos de “Hail Hitler!”; “I have a dream”; “Save the planet”; “I want you”; “Peace and love”; “Just do it”.

Essas ideias levantam a questão sobre a relação das marcas(1) com os grupos. Não seriam elas importantes e até necessárias? Nas palavras de Olins  “o processo de formação das marcas é um processo principalmente sobre envolvimento e associação; a demonstração visível e externa de afiliação pessoal.”

 

A política de Hitler mostra como grupos giram em torno de uma ideia centrada na identidade coletiva
A política de Hitler mostra como grupos giram em torno de uma ideia focada na identidade coletiva

As marcas nos ajudam a expressar quem somos. Elas funcionam como atalhos, são como abreviações mergulhadas em uma banheira de significados. As admiramos e defendemos porque elas, sem muito esforço, comunicam sobre nós. Facilmente expõem e, muitas vezes, escancaram distinções e peculiaridades.

Não foi à toa que sua origem comercial se estendeu para os esportes, política, movimentos sociais, arte, terceiro setor, educação, moda, regiões e até nações. Concordando com Olins, o impacto das marcas é imensurável social e culturalmente, chegando a ser o presente mais significativo dado à cultura popular pelo comércio.

 

Marcas como a camisa de seleção de futebol nos ajudam a expressar quem somos .Ken Tsang
Marcas como a camisa de seleção de futebol nos ajudam a expressar quem somos  (foto Ken Tsang)

Basta ver as pessoas nas ruas em todo o mundo, vestidas dos pés à cabeça com nomes e símbolos de refrigerantes, universidades, times de futebol, museus, ONGs, regiões, países. O mais intrigante dessa coletividade é sua relação com o processo de geração das marcas. Jung nos ajuda muito a entender essa relação ao definir o que ele chama de inconsciente coletivo:

“Em complemento à consciência, que é solidamente de natureza pessoal e que acreditamos ser a única psique empírica (…) existe um sistema psíquico secundário de natureza impessoal, universal, coletivo que é idêntico em todos os indivíduos. Esse inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, os arquétipos, que podem apenas se tornar conscientes secundariamente e que dão forma definida a certos conteúdos psíquicos.”(2)

 

O Festival de Wookstock,  em 1969, nos EUA, sintetiza a identidade coletiva da geração paz e amor

O Festival de Wookstock, em 1969, nos EUA, sintetiza a identidade coletiva da geração paz e amor

Enquanto o conteúdo do inconsciente individual consiste principalmente de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é composto pelos arquétipos. Eles são formas definidas presentes na psique que influenciam, invisivelmente, o coletivo. Na Grécia, por exemplo, os arquétipos foram chaves na construção dos mitos.

Apesar de tomarem inúmeras formas, existem algumas imagens arquetípicas recorrentes como a da mãe, do pai, do herói, do sábio, do mentor. É vasta sua influência, não restrita à Grécia nem ao tempo. Fortemente direcionam respostas emocionais e de comportamento de grupos, evocando profundos sentimentos nas pessoas. Sua onipresença é tanta que torna nítida sua influência, por exemplo, na arte.

 

Representação do inconsciente coletivo, que é composto pelos arquétipos
Representação do inconsciente coletivo, que é composto pelos arquétipos

Por que semelhantes estórias aparecem em todo o mundo? É o que pergunta Booker questionando-se, por exemplo, sobre o fato de estórias como a da Cinderela ser encontrada na Europa, da Sérvia à Escócia. Da Rússia à Espanha. E também a mesma estória ser encontrada na China e na África? Aí, complica. Como aponta o autor:

“Sem, de forma alguma querer diminuir a genialidade dos grandes contadores de estórias, se existe uma coisa que vemos emergir nas últimas cem páginas é a extensão que as estórias contadas até pelos maiores deles não são as suas próprias. Suas habilidades se encontram no poder que têm de criar novas roupagens para vestir um tema que é latente, tácito, não apenas em suas mentes, mas também na mente do público”

Pensar que as estórias de Hamlet, Lolita, Don Quixote, e inúmeros outros, não são do próprio autor (na sequência, Shakespeare, Vladimir Nabokov, Miguel de Cervantes) é quase absurdo e chocante. No entanto a habilidade desses autores se encontra na sensibilidade em captar e expressar criativamente uma história, uma ideia gerada a partir de uma estrutura latente, tácita, herdada e localizada no inconsciente coletivo de todos, do criador e dos leitores.

 

Pensar que as estórias de Hamlet, Lolita, Don Quixote, não são do próprio autor é quase absurdo e chocante
Pensar que as estórias de Hamlet, Don Quixote e Lolita não são do próprio autor é quase absurdo

No mais profundo, a essência das mensagens que os autores comunicam é sempre a mesma. A chave então para o entendimento das estórias está em enxergar como elas estão enraizadas em um nível inconsciente que é coletivo à toda a humanidade.

 

E o que a marca tem com isso?

Como as grandes estórias, as marcas não são criadas do nada. São criadas a partir do que existe. E o que existe são pessoas, grupos, identidades, arquétipos. Fazendo o paralelo com os artistas, não são os empreendedores, homens de negócio, políticos, ativistas, visionários, esportistas quem criam as grandes marcas. Eles são, no entanto, como artistas sensíveis e criativos, dão cor e forma a uma estrutura que existe e que é herdada e compartilhada entre as pessoas.

Nessa perspectiva os criadores são pessoas comuns como eu e você. Não é apenas o que são, mas o que representam e que as tornam poderosas. Nós as criamos em grupos e as usamos para representar quem somos. Muitas falham porque nada significam, não estão preparadas para o fim que consciente ou inconscientemente buscamos. As que surgem como ícone, como símbolo de uma ideia, essas são dignas porque representam o que existe, e o que existe são pessoas, pessoas de carne e osso, reais, em busca de significado.

César  Queiroz é sócio e estrategista da 2DA Branding & Design.

www.2da.com.br

 

Bibliografia

[1] SCHUMACHER, E. F. (1978), A Guide for the Perplexed.

2 TAJFEL, H. (1974), Social identity and intergroup behaviour. Social Science Information, 13, 65-93.

3 OLINS, Wally (2003), Olins on Brand.

4 JUNG, C. G. (1981), The Archetypes and The Collective Unconscious (Collected Works of C.G. Jung Vol.9)

5 BOOKER, Christopher (2004), The seven basic plots. Why we tell stories.

Referências

1 O termo Marcas aqui é visto como a representação da identidade, idéia core de um grupo. A representação pode se dar por meio do comportamento, músicas, imagens, estilo.

2  O conceito de arquétipo não é novo, como aponta Jung (1981, pág 43) a pesquisa mitológica o chama de “motifs”, Levy-Bruhl ao estudar a psicologia dos primitivos o chama de “representations collectives”, no campo de religião comparativa Hubert e Mauss o chama de “categorias da imaginação” e Adolf Bastian o chamava de “pensamentos primordiais.”

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