Ensino de Design: modismos, neologismos e outros “ismos”

Postado em: 26 / 08 / 2012

Flávio Antero

Flávio Anthero

Flávio Anthero

A prática do ensino nunca foi uma atividade simples, mesmo nos tempos em que o aluno tinha uma postura quase totalmente passiva, exercendo o papel de um recipiente vazio que ano após ano era preenchido pelo conhecimento derramado pelos professores, corroborando o mito de que a palavra aluno, em sua origem, significa sem luz, fato inverídico.

Nos dias atuais, parece que essa prática tem se tornado ainda mais complexa. Em meio às discussões sobre a qualidade do ensino médio e fundamental e à quase inexistência do ensino infantil, às cotas em universidades públicas, às greves e à desqualificação docente, temos ainda o impacto das novas tecnologias e os choques entre geração que ocorrem em sala de aula e nunca foram tão evidentes quanto agora.

Isso tudo se soma à complexidade das relações que acontecem em sala. O ensino é um grande exercício de relações humanas. Para o professor, achar o ponto de equilíbrio entre manter um clima produtivo e de respeito mútuo para não se perder em meio ao não reconhecimento das hierarquias, fato tão comum entre as gerações mais recentes. Além, é claro, dos smartphones ligados e conectados permanentemente, da superficialidade do conhecimento, da impaciência no alcance dos objetivos e da inconstância de propósitos.

É claro que toda generalização assume em si mesma vários equívocos, porém, em linhas gerais, esse contexto tem sido enfrentado diariamente nas instituições de ensino, sendo tema recorrente nas reuniões pedagógicas, conversas de corredor e na hora do cafezinho. Um professor cuja aula não é preparada com refinados e atuais recursos multimídia parece fadado ao fracasso, principalmente em cursos de Design.  O docente liga o seu computador ao projetor multimídia e a pergunta surge na hora:

–“ Vai mandar a apresentação pra gente?”

Em caso de resposta positiva, a maioria dos alunos se reclina em suas cadeiras, aqueles poucos que levaram algum caderno e caneta (ferramentas primitivas para anotação dos conteúdos das aulas) os deixam de lado e parece que o simples fato de o professor enviar o arquivo com o conteúdo da aula fará o conhecimento florescer dentro de suas cabeças!

Ano passado fiz uma experiência. Ministrei um semestre completo de uma disciplina de metodologia de projeto em um curso de Design Gráfico sem usar em nenhum momento uma apresentação multimídia. Não passei nem um vídeo. Nada. Nem um link para o Youtube eu sugeri. Coloquei apenas arquivos de texto à disposição dos alunos, complementando a bibliografia da disciplina, e levei livros para a sala.

Quadro escolar perde espaço para as apresentações multimídia e para os tablets (modelo LineaRica)

Quadro escolar perde espaço para as apresentações multimídia e para os tablets (modelo LineaRica)

Escrevi ou desenhei tudo no quadro, textos, gráficos, tabelas, tudo reproduzido manualmente para que os alunos copiassem (alguns fotografaram o quadro porque escrever cansa). Preenchia todo o quadro várias vezes por aula, comentava, perguntava, apagava e começava tudo de novo. Construía diagramas junto com a turma, frases, resumos, sínteses, análises e conclusões sobre o conteúdo abordado.

Ao final da disciplina, com as notas já publicadas, abri um fórum de discussão para que os alunos comentassem, no ambiente virtual, suas impressões sobre a condução das aulas. Mais de vinte alunos comentaram, dois criticaram a falta de uso do “datashow”, porém, a imensa maioria gostou da sistemática, disseram se sentir mais “cobrados”, tiveram que “estudar”, “copiar a matéria do quadro”, “usar o caderno” e alguns relataram a necessidade de “comprar um caderno para assistir à aula”, sendo que estavam no segundo período do curso.

Não estou fazendo apologia contra as tecnologias aplicadas ao ensino nem sugerindo que todos descartem seus arquivos e comprem estoques de canetas para quadro branco, mas quero chamar a atenção para a necessidade de se agregar novos recursos, mas sem deixar de lado mecanismos fundamentais do processo de ensino-aprendizagem que ainda podem e devem fazer parte das aulas.

iPad substitui o tradicional caderno e lápis que estão se tornando artigos primitivos na sala de aula

iPad substitui os tradicionais caderno e lápis que estão se tornando artigos primitivos na sala de aula

Leituras dirigidas de textos, seminários, debates e outras dinâmicas diversas estão sendo abandonadas em prol de uma tecnologia que está sendo muito mal empregada na maior parte das vezes. Digitalizar o conteúdo das antigas transparências, agregar meia dúzia de efeitos gráficos e inserir dois ou três vídeos no decorrer da aula, não a torna melhor ou mais produtiva, pelo contrário, pode tornar o aluno ainda mais passivo, valorizando a embalagem e desprezando o conteúdo, enquanto espera o arquivo ser enviado para o seu tablet.

E, falando em conteúdo, parece que a superficialidade inerente aos tempos atuais tem refletido de forma danosa no ensino. A prática profissional em Design tem incorporado, sistematicamente, nos últimos anos, conceitos muitas vezes alheios à nossa área do conhecimento, como uma tentativa de valorizar e distinguir nossa profissão. Se já não bastasse assumir um termo estrangeiro para batizar nossa atividade, ainda precisamos adjetivá-lo permanentemente, a cada hora com um termo novo, em uma busca insana por reconhecimento, o que me faz pensar quão anda baixa a nossa autoestima.

Lembro-me de que quando estudava na ESDI, estava na moda o Design Inteligente. De lá para cá temos Design Ergonômico, Design Social, Design Sustentável, Design Emocional, Design Experiencial e tantos outros. Temos, também, os profissionais que surgem em meio a esse contexto: Designers de Superfície, Designers de Interfaces, Designers de Interação e, um dos melhores, Designers Digitais! Agora, eu pergunto: Qual trabalho de Design não trata de superfícies, interfaces e interações? Essa adjetivação e essa segmentação são mesmo necessárias? Acrescentam alguma coisa? Qual o oposto de Design Inteligente? O que é um Designer Digital? Seria um avatar do Designer em carne e osso?!

 

Avatares, personagens do filme Avatar, de ficção científica do diretor James Cameton

Avatares do filme Avatar, do diretor James Cameton, que criou modelos digitais reproduzindo humanos

Eu até consigo entender o uso de tantos estrangeirismos, modismos e neologismos como uma forma de conquistar clientes, cobrar mais pelos projetos, vender livros, cursos e consultorias. É a briga pela sobrevivência no mercado, ainda que ética e conceitualmente questionável, mas ver os currículos dos cursos superiores serem alterados para incluir disciplinas estapafúrdias, com objetivos unicamente mercadológicos, deixar de lado nomes consagrados da teoria, história e fundamentação do Design para incluir bibliografias requentadas sobre temas que pouco contribuem para a formação profissional, isso eu não entendo. E não concordo.

A profissão do designer e o seu ensino nunca foi, não é, e nunca será uma atividade popular. Com isso, não quero dizer que o Design é uma atividade de elite, mas o fato é que nunca haverá em nenhum mercado, mesmo os mais maduros, oportunidades de emprego e trabalho para Designers na mesma proporção como há para Administradores, Engenheiros, Médicos ou Advogados, por exemplo. É uma relação simples entre as necessidades da sociedade e das organizações, a oferta e a demanda do mercado. É assim no mundo inteiro, Design não é formação de massa, a despeito das contribuições que a atividade pode trazer para a totalidade do contexto social e econômico quando conduzida adequadamente.

Todavia, no Brasil, os cursos de Design entraram no alvo das instituições de ensino nos últimos anos, a oferta aumentou muito além da demanda da sociedade e da capacidade do mercado de absorver esses novos profissionais. Isso sem falar na falta de professores qualificados com formação em Design e na precariedade da infraestrutura disponível para discentes e docentes.

Hoje, temos vagas ociosas para fazer graduação em Design mesmo em Universidades públicas, gratuitas. Mesmo as instituições referência na área tem que fazer várias chamadas no vestibular para fechar as turmas de calouros. No caso das instituições privadas, menos alunos significam menos recursos, menos carga-horária docente e menos investimento.

Se o ensino já fica comprometido dentro dessa realidade, as atividades de pesquisa e iniciação científica praticamente inexistem. Todos esses fatores formam uma equação complexa que precisa ser devidamente equilibrada para que possamos colocar o ensino de Design onde ele deve estar: à frente da prática no mercado e não a reboque desta.

Enquanto a principal preocupação dos alunos for a atualização da versão do software da moda ou o tipo e a capacidade do computador no laboratório de informática, continuaremos na estaca zero. Enquanto os professores estiverem preocupados em saber como prender a atenção dos alunos com aulas e atividades mirabolantes, nada agregaremos de valor na formação desse profissional. E, enquanto os dirigentes e coordenadores de curso estiverem mais preocupados em criar estratégias para conseguir o mínimo de alunos para fechar as turmas do que com as questões pedagógicas, nunca poderemos avançar de verdade na qualidade do ensino.

O momento é propício para essa reflexão. Precisamos rever nossas práticas pedagógicas, nossas diretrizes curriculares, adequar nossas matrizes e infraestrutura. Alguns cursos vão deixar de existir e outros terão que se readaptar integralmente para sobreviver. Temos que deixar de inventar neologismos, ceder a modismos mercadológicos e reencontrar nossas raízes conceituais, aquilo que realmente fundamenta e consolida o ensino e a prática do Design e, tudo isso, sem deixar de olhar para o futuro. Está na hora!

O prof. Dr. Flávio Anthero é desenhista Industrial e professor do PPGDesign/UDESC

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Comentários (1)

 

  1. Fico admirado com a clareza dos depoimentos do Prof. Flávio , pois sou aluno de Design Industrial e participo deste processo descrito. Apesar de ser o mais velho da turma, afinal nasci quase us anos a mais que o meio do século passado, tendo a oportunidade de estudar nestes anos vendo as variantes que o ensino tem se submetido para acompanhar uma trajetória de informações relâmpago. Parece que estamos vivendo a cultura do imediato, onde mesmo os docentes, às vezes ficam inferiorizados pelos alunos, por ser estes alunos conhecedores de práticas do computador de ponta.
    Atualizar os professores?
    Devolver atribuições como a praticada pelo Prof. Flavio no relato do texto?
    Aceitar passivo esta massificação?
    Eu, particularmente, vejo tudo como novidade, afinal vi nascer a “TV colorida” e olhei ao vivo o pe´do astronautas na lua, então tudo é lucro, mas não consigo acompanhar plenamente, pois meu conhecimento é empírico, atuo nas artes a 32 anos e isto me deu uma sensibilidade para aceitação e aprendizado. Fiz tabuadas, ortografia, cusro profissionalizante em desenho, trabalhei com aranha e caneta nankin, usando régua T. Parece pré histórico, mas não é conhecimento e sei que com isto, posso não acompanhar o ritmo atual do ensino, mas tenho uma vantagem, sei fazer.

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